quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Ressaca

     E lá estava ela, caminhando trôpega de volta para casa. Podia ser culpa do sapato alto na rua sem asfalto, ou até mesmo da fome que começava a devorar as paredes do estômago, mas o fato é que ela andava bêbada sem ter ingerido uma gota de álcool sequer. No caminho, pensamentos desvairados, desconexos, diálogos imaginários descuidados, preocupações do dia que se passou e dos que ainda estavam por vir. Nunca mais passaria um dia inteiro em jejum, ela jurava para si mesma, como já havia feito centenas de outras vezes, sem nunca cumprir. Ele iria passar em sua casa esta noite, para enfim colocar os pingos nos is, ele prometeu. Verdade que não era a primeira vez que prometia isso. Assim como ela, ele também tinha uma sacola cheia de promessas não cumpridas. Mas desta vez ela acreditava que seria diferente. Antes de sair do trabalho, ela passou no supermercado e fez compras para um jantar a dois, onde, enfim, os is ganhariam pingos. Talvez viesse daí a sensação de ressaca. Sua rua parecia mais longa do que nunca, e seus passos, mais tortos. Sua vida inteira parecia torta, bêbada. A vida bêbada de uma pessoa sóbria. Talvez um pouco de álcool curasse tudo. Não dizem que o melhor remédio para ressaca é mais um gole? Ou um copo inteiro? Além do que, o álcool desinfeta, e ela precisava disso: desinfetante para a alma. Uma vida na ressaca por não ser vivida, culpa dos malditos is sem pingos.

     Um cigarro. Talvez um cigarro ajudasse. Dizem que cigarro combate a ansiedade. Um barzinho, “um maço de cigarros, por favor” “Qual?” Qual? Já decidira comprar cigarros, agora ainda tinha que escolher um? Pediu um Marlboro, automaticamente. Era o cigarro que ele fumava e ele raramente ficava ansioso. Devia funcionar. Seguiu seu caminho torto, com passos tortos, até enfim chegar em casa. Abriu a porta, entrou, acendeu as luzes. Olhou para a sala vazia com estranhamento. Não parecia a mesma sala que deixara de manhã. Foi até a cozinha largar as compras. Cozinha vazia, limpa e arrumada. Seguiu para o quarto, onde deixou a bolsa. As coisas nunca ficavam tão arrumadas com ele em casa. E ela gostava da casa arrumada. Mas temia a casa vazia. O silêncio a aterrorizava, ligou o rádio. Sentiu novamente a tal da ressaca, lembrou-se dos cigarros. Foi até a cozinha em busca de fósforos. Pegou a caixinha cheia dentro do armário, tirou um palito e o riscou. Lembrou-se de como ele riscava o fósforo ao contrário, e de quantos isqueiros ela deu a ele, que perdeu. Nossa, foram tantos… “Ai!” Voltou do passado com a chama quente perto do dedo. Apagou o fósforo num reflexo. Pegou o maço de cigarros, abriu e puxou um, esforçando-se para não reacender mais lembranças. Acendeu o cigarro, catou um cinzeiro – lembrança dele – e sentou-se. A última vez que fumara na vida foi no início da faculdade. Nossa, há quanto tempo… Tragou o cigarro, sentiu a fumaça entrando em seus pulmões e lembrou-se das amigas do colégio e de seu primeiro cigarro. Soltou a fumaça e ficou quase orgulhosa ao constatar que depois de vários anos sem fumar, não engasgara. Sentiu um alívio imediato. Tanto tempo sem um cigarro e esta continuava sendo uma prática válvula de escape. Continuou sentada, divagando, enquanto a brasa consumia o cigarro e as lembranças consumiam sua alma.

     Pouco antes de chegar no filtro, apagou o cigarro. A fome voltou a devorar as paredes do estômago. Sentiu dor de cabeça e tontura, achou melhor fazer a janta, ele chegaria a qualquer momento. Preparou a comida com cuidado e dedicação. Sabia que o tempero estava perfeito, do jeitinho que ele gostava. O tempo passava e nada da campainha tocar. A fome gritava. Decidiu comer logo, esquentaria tudo quando ele chegasse, e até comeria um pouquinho novamente, só para acompanhá-lo. A dor de cabeça passou, mas o sentimento de ressaca continuava. Já estava ficando tarde, onde ele estava? Os is precisavam dos pingos, estavam irriquietos como crianças sem pais. Sentou-se para esperar. “Será que aconteceu alguma coisa? Por que ele não telefona? Também não vou ligar, é melhor”. O tempo passava, implacável. Ela, escorregando pelo sofá, tentando manter-se atenta, perdeu a briga para o cansaço e caiu no sono.

     Acordou com o sol invadindo a sala e acariciando seu rosto. Já era quase hora de ir para o trabalho. Mais uma espera em vão. Mais uma promessa violada, de um amor que tanto prometeu e nunca cumpriu. Levantou-se e foi para o banho, arrumar-se para mais um dia de ressaca.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

sonhos

Sonhei que dormia,
o dia se esvaia em uma tarde cinza de céu nublado.
Revoltas, as águas do mar batiam na areia me pedindo pra acordar.
Mas não atendi,
continuei a dormir, sonhando.

Sonhei que sonhava,
o dia amanhecendo em uma bela manhã de céu ensolarado.
Nas águas calmas do mar, eu velejava
rumo ao desconhecido distante, uma nova aventura...
até que então, acordava.

Sonhei que acordava,
uma noite morna e estrelada, o amor ao meu lado,
sem mar, sem areia, sem barco,
mas quem precisa dessas coisas?

Acordei.

o quarto escuro e frio,
o mortal silêncio da madrugada.
Pela janela, contemplando a lua cheia e prateada,
já não me sabia mais
se dormindo
ou sonhando
ou acordada…
Querendo viver meus sonhos e realidades,
mesmo que paralelas,
mas infinitas em possibilidades…

(06/07/2002)

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Distante

A distância diz tanto!
tudo é dito e desdito,
então edito, dia-a-dia,
um breve acalanto

nessa melodia melancólica
de sincero desencanto,
prezo o instante – preso, insistente –
em que ansiosamente, mas sem espanto,
assisto às suas asas (assaz em vão)
alçando longos vôos de déu em déu...
enquanto me espalho em pranto,
devaneios e desatinos e desisto:
já nem te quero tanto!

sábado, 13 de outubro de 2007

Ah!

Ah, a vida!

Este joguinho de gato-e-rato
que dá tanto gosto
quanto desgosto de se brincar,
que nos deixa felizes, arrasados,
lavados, amarrotados,
e até passados,
tudo de uma vez...

que nos traz lágrimas atrás de sorrisos,
atrás de esperanças, atrás de desesperos,
atrás de recomeços, atrás de inconclusões...

uma seqüência aleatória
de escolhas erradas,
mal-entendidos,
desentendidos
e parcos entendimentos.

Vidinha de medos,
inseguranças,
incertezas,
absolutas ou parciais,
raramente imparciais.

ela, que é madrinha sem ser fada,
que amarga ao adoçar,
às vezes erra na mão
e azeda,
mas recicla.

Ah, a vida...
seja em verso ou prosa,
romance, drama ou terror,
forró, MPB, rock ou funk...
seja tudo e ao mesmo tempo,
ou nada e nunca...

Quem me dera viver um sonho a cada dez vidas que sonho!

domingo, 7 de outubro de 2007

Purgatório

A madrugada estava triste como sua alma. A vida lhe parecia um erro. Tanto já havia chorado, gritado e se desesperado que mal lhe restavam forças para respirar. Tudo que havia feito, deixado de fazer, dito e ouvido fazia a cabeça girar. A última discussão ecoava ininterruptamente em seus pensamentos. Cada insulto e agressão parecia cortar a pele, um súbito sentimento de culpa sufocando o coração. Tirou toda a roupa, despindo-se de seus problemas, um a um, peça por peça. Ligou o chuveiro e deixou a água gelada cair sobre a cabeça. Sentiu o choque térmico e tremeu, mas não recuou. Esvaziou a mente. Parou de pensar para simplesmente sentir cada gota que molhava seu corpo. Ensaboou-se delicada e milimetricamente, como se aquele fosse o último e o primeiro momento de sua vida. Viu descer pelo ralo toda a sujeira, dor, culpa e tristeza que antes carregava. Assim foi seu purgatório. Saiu do banho purificada e, vendo os primeiros raios de sol iluminarem e aquecerem a cidade, teve a certeza absoluta de que tudo ficaria bem. Tinha que ficar.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Des-

percorro descaminhos,
desconstruo idéias,
conforto-me no desconsolo.

desfaleço procurando,
desencontro-me.
uma vida desfeita em certezas.

descabelada,
desavisada,
desmotivada.

desfocadas, minhas lentes
mostram apenas o deserto.

destôo da palheta de cores,
não faço por desmerecer.
sou um amontoado de ilusões
desmontadas

desperto meu cinismo,
despeço-me do romantismo...
(despreocupe-se, después ele volta.
não há desalmado capaz
de desterra-lo para sempre!)

destemida, caço tigres,
desarmo bombas,
desvendo mistérios
e vendo tudo por aí,
despercebida...

aí eu me desminto:
minha vida é metafórica.
e desaforada.