quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Onde houver angústia... as asas



Ti,

Eu não gosto de chorar.
Nunca gostei, desde pequena, criança mesmo, já não era de fazer espetáculos de mim mesma. Muito menos espetáculos assim, deprimentes. Não sei bem porque, não que eu ache que chorar é uma fraqueza, acho que é porque eu não sei lidar com gente chorando, mesmo que seja eu. Minhas habilidades sócio-pessoais não são das melhores, nunca foram.

Eu não gosto de chorar, especialmente em público.
Mas às vezes não dá pra evitar. Outro dia fui ao banco, tentar pagar o carro, atrasado, mas não deixaram, porque o carro tá no meu nome e o cheque era do meu pai. Mas, oras, o carro é pago desde 2008, nunca com cheque meu, várias vezes atrasado. E em novembro eu paguei atrasado, no mesmo banco, mas em outra agência, com cheque do meu pai, e ninguém reclamou!… Enquanto eu tentava, em vão, explicar tudo isso pra gerente do banco, foi surgindo um nó na garganta e lágrimas começaram a empoçar os olhos. Subconsciente safado, porque, inclusive, a última coisa que minha mãe fez, fora de casa, antes de ter um treco e ser internada, foi ir exatamente aquele banco, àquela agência, pagar aquele carro, atrasado, com um cheque que não era meu. Na verdade, nem sei como ela pagou, só sei como não pagou: não com o meu cheque, porque depois disso, nos dias que sobraram, este assunto não era importante. Simplesmente não era importante. Mas a gerente do banco não tinha toda essa perspectiva. Pra ela, eu era uma maluca, chorando e tentando, com a voz embargada, explicar alguma coisa sobre como eles deveriam me deixar pagar uma conta, especialmente porque eles deviam estar mais interessados em receber do que eu em pagar. No fim das contas, eu desisti e saí do banco, porque chorar num banco é esquisito demais até pra mim, mesmo sabendo que tinha uma razão por trás daquilo.

Minha mãe morreu em um dia cinza.
Não é a memória afetiva falando, era um dia cinza mesmo, nublado, mas em que não choveu. Pelo menos não meteorologicamente falando. Eu ainda não tinha escrito sobre esse dia, o que quer dizer que não tinha parado pra pensar muito, talvez por evitação mesmo (que é uma palavra feia, mas existe de verdade)... E também quer dizer que, quando escrevi a primeira frase desse parágrafo, as lágrimas voltaram, intrometidas, sem convite. Agora, tentando lembrar, a memória é embaçada, e isso não é culpa das lágrimas, não das de agora.
O dia passou como um borrão, a notícia chegou umas 6h da manhã, me acordando, de um sono meio induzido por um tranquilizantezinho. Santo tranquilizantezinho, aliás. Eu posso ter parecido maluca, mas era uma maluca funcional. O que também pode não ser mérito do calmante, mas do estado de choque. Eu fui ao banco, à farmácia, ao hospital, dirigindo, ao posto de gasolina, fiz comida, fiz café, tive uma crise de choro na hora de escolher uma roupa pra ela, reclamei dos mosquitos, da lerdeza do carro fúnebre, ri no meio do enterro do caixão que quase caiu, chorei inconsolável em meio a vários abraços, feliz por ter amigos, não consegui evitar piadas fora de hora, vi um filme, aliás, muito engraçado, quase não dormi. Eu sei que essas coisas aconteceram, não nessa ordem, mas do que melhor me lembro é de que era um dia cinza. Cinza de nublado, cinza de tristeza e de pesar, cinza de preocupação, cinza do vazio que ficou.

Eu nunca tinha ido a um enterro antes, sou mesmo socialmente inábil, e certamente nunca poderia imaginar que o da minha mãe seria o primeiro. Minha mãe era provavelmente a pessoa que mais me amava no mundo. Certamente, dentre as pessoas que ela amava, era eu a mais amada. Vai ver foi por isso que não queria ter irmãos, porque sou ciumenta e gosto de ser a mais amada. Eu sempre soube disso, que era a mais amada, mesmo quando ela parecia não amar tanto assim, quando me irritava, sim, ela era bem irritante e não virou santa porque morreu. Minha mãe era implicante, intrometida, fofoqueira, barulhenta, superprotetora, chata e irônica. Mas era também a mais engraçada, sem-noção, maluca e simpática. Pelo menos 90% de quem a conhecia, gostava. Ela era meu azeite social, porque conhecia todo mundo, sabia de tudo. Ela quase sempre aparentava bom humor e enchia qualquer lugar com sua risada exagerada. Ela adorava me fazer passar vergonha, sempre ria e me chamava de boba e de antipática. E a gente discutia todo dia, por qualquer bobagem, mas nunca brigava de verdade-verdadeira, à vera. Ela era grande parte da minha vida, a maior, porque tomava conta de tudo, queria saber de tudo, e eu me senti tão sozinha, tão fragmentada quando ela morreu… como uma criança abandonada no mundo pela mãe.
Mas eu já sou burra-velha, eu sei.

Hoje eu fui ao segundo enterro da minha vida, em menos de três meses. A avó da minha melhor-amiga-desde-que-nasci morreu. Era um pouco minha vó também, e foi enterrada no mesmo cemitério que minha mãe. Mas eu não levei flores nem nada, mamãe não era muito chegada a flores, dizia que tinham *cheiro de defunto*. E eu nem sei qual é o jazigo ao certo, sequer faço questão de saber, porque não é ali que ela está. Onde quer que seja, não é ali. Passei o resto do dia meio chorosa, nem fui trabalhar, mas também não fui dormir, vim escrever.

Isso tudo é pra dizer que, quando eu mais me senti sozinha, muito mesmo, de verdade, você sem nem saber, me abraçou e disse “Estamos juntos”.
E quando eu fui fragmentos, você me levou pra casa e me colou.
E, não bastasse o tanto que eu já te amava antes, agora amo ainda mais, porque você é meu melhor-amigo-desde-antes-até-o-infinito-e-além, que me traz sorrisos involuntários, que me inspira e me faz escrever, que me faz acreditar em mágica e esquecer que eu não posso voar.
E porque eu gosto mais de mim com você por perto, já que, na verdade, eu gosto mais é de você.
E porque você é a coisa mais importante que aconteceu comigo hoje e em cada dia dos últimos mais de dez anos, mesmo quando me irrita, pessoa mais implicante que você é.
E também é pra agradecer por ter você na minha vida, porque eu não sei agradecer direito, então, além de prece pra Deus, Buda, Zeus, Alá, Krishna, Jeová, Super-Homem e quem mais quiser me escutar, vim agradecer a você, que entrou na minha vida…
 e resolveu ficar.

Eu não gosto de chorar.
Nunca gostei . Às vezes eu pareço fria, insensível, como se não ligasse pra nada, indiferente. Mas não é isso. É que não sou dada a demonstrações explícitas de sentimentos.
Desde pequena, criança mesmo, já não era de fazer espetáculos de mim mesma.

Mas eu te amo, muito, mesmo, viu?

Lu.

(08-02-2011)

4 comentários:

Tiago de Paula disse...

vi.

Unknown disse...

ainda devo comentar algumas vezes aqui,
ou pessoalmente, ou em textos em geral.

eu gostaria de destacar partes que mais gostei, ficaria assim:
http://cabriolas.blogspot.com/2011/02/onde-houver-angustia-as-asas.html

os dias que sobraram e espetáculos de mim mesma são lindos e sequer são os meus trechos prediletos...
lindo o texto.

gostei muito de ler sobre sua mãe.
muito mesmo,
é um comentário estranho:
fico feliz quando você fala dela.

volto a falar mais noutra hora,

beijos.

Unknown disse...

uau! que surpresa! um panegírico para mim!

[esse deveria ser o primeiro comentário, para ficar mais verossímel]

Coral disse...

lindo seu texto...

me deu um nó na garganta ler vc falar sobre a morte da sua mãe...

beijos