E lá estava ela, caminhando trôpega de volta para casa. Podia ser culpa do sapato alto na rua sem asfalto, ou até mesmo da fome que começava a devorar as paredes do estômago, mas o fato é que ela andava bêbada sem ter ingerido uma gota de álcool sequer. No caminho, pensamentos desvairados, desconexos, diálogos imaginários descuidados, preocupações do dia que se passou e dos que ainda estavam por vir. Nunca mais passaria um dia inteiro em jejum, ela jurava para si mesma, como já havia feito centenas de outras vezes, sem nunca cumprir. Ele iria passar em sua casa esta noite, para enfim colocar os pingos nos is, ele prometeu. Verdade que não era a primeira vez que prometia isso. Assim como ela, ele também tinha uma sacola cheia de promessas não cumpridas. Mas desta vez ela acreditava que seria diferente. Antes de sair do trabalho, ela passou no supermercado e fez compras para um jantar a dois, onde, enfim, os is ganhariam pingos. Talvez viesse daí a sensação de ressaca. Sua rua parecia mais longa do que nunca, e seus passos, mais tortos. Sua vida inteira parecia torta, bêbada. A vida bêbada de uma pessoa sóbria. Talvez um pouco de álcool curasse tudo. Não dizem que o melhor remédio para ressaca é mais um gole? Ou um copo inteiro? Além do que, o álcool desinfeta, e ela precisava disso: desinfetante para a alma. Uma vida na ressaca por não ser vivida, culpa dos malditos is sem pingos.
Um cigarro. Talvez um cigarro ajudasse. Dizem que cigarro combate a ansiedade. Um barzinho, “um maço de cigarros, por favor” “Qual?” Qual? Já decidira comprar cigarros, agora ainda tinha que escolher um? Pediu um Marlboro, automaticamente. Era o cigarro que ele fumava e ele raramente ficava ansioso. Devia funcionar. Seguiu seu caminho torto, com passos tortos, até enfim chegar em casa. Abriu a porta, entrou, acendeu as luzes. Olhou para a sala vazia com estranhamento. Não parecia a mesma sala que deixara de manhã. Foi até a cozinha largar as compras. Cozinha vazia, limpa e arrumada. Seguiu para o quarto, onde deixou a bolsa. As coisas nunca ficavam tão arrumadas com ele em casa. E ela gostava da casa arrumada. Mas temia a casa vazia. O silêncio a aterrorizava, ligou o rádio. Sentiu novamente a tal da ressaca, lembrou-se dos cigarros. Foi até a cozinha em busca de fósforos. Pegou a caixinha cheia dentro do armário, tirou um palito e o riscou. Lembrou-se de como ele riscava o fósforo ao contrário, e de quantos isqueiros ela deu a ele, que perdeu. Nossa, foram tantos… “Ai!” Voltou do passado com a chama quente perto do dedo. Apagou o fósforo num reflexo. Pegou o maço de cigarros, abriu e puxou um, esforçando-se para não reacender mais lembranças. Acendeu o cigarro, catou um cinzeiro – lembrança dele – e sentou-se. A última vez que fumara na vida foi no início da faculdade. Nossa, há quanto tempo… Tragou o cigarro, sentiu a fumaça entrando em seus pulmões e lembrou-se das amigas do colégio e de seu primeiro cigarro. Soltou a fumaça e ficou quase orgulhosa ao constatar que depois de vários anos sem fumar, não engasgara. Sentiu um alívio imediato. Tanto tempo sem um cigarro e esta continuava sendo uma prática válvula de escape. Continuou sentada, divagando, enquanto a brasa consumia o cigarro e as lembranças consumiam sua alma.
Pouco antes de chegar no filtro, apagou o cigarro. A fome voltou a devorar as paredes do estômago. Sentiu dor de cabeça e tontura, achou melhor fazer a janta, ele chegaria a qualquer momento. Preparou a comida com cuidado e dedicação. Sabia que o tempero estava perfeito, do jeitinho que ele gostava. O tempo passava e nada da campainha tocar. A fome gritava. Decidiu comer logo, esquentaria tudo quando ele chegasse, e até comeria um pouquinho novamente, só para acompanhá-lo. A dor de cabeça passou, mas o sentimento de ressaca continuava. Já estava ficando tarde, onde ele estava? Os is precisavam dos pingos, estavam irriquietos como crianças sem pais. Sentou-se para esperar. “Será que aconteceu alguma coisa? Por que ele não telefona? Também não vou ligar, é melhor”. O tempo passava, implacável. Ela, escorregando pelo sofá, tentando manter-se atenta, perdeu a briga para o cansaço e caiu no sono.
Acordou com o sol invadindo a sala e acariciando seu rosto. Já era quase hora de ir para o trabalho. Mais uma espera em vão. Mais uma promessa violada, de um amor que tanto prometeu e nunca cumpriu. Levantou-se e foi para o banho, arrumar-se para mais um dia de ressaca.