Uma história em três atos
“Consta nos astros, nos signos, nos búzios
Eu li num anúncio, eu vi no espelho, tá lá no evangelho, garantem os orixás
Serás o meu amor, serás a minha paz
Consta nos autos, nas bulas, nos dogmas
Eu fiz uma tese, eu li num tratado, está computado nos dados oficiais
Serás o meu amor, serás a minha paz (…)”
Eu li num anúncio, eu vi no espelho, tá lá no evangelho, garantem os orixás
Serás o meu amor, serás a minha paz
Consta nos autos, nas bulas, nos dogmas
Eu fiz uma tese, eu li num tratado, está computado nos dados oficiais
Serás o meu amor, serás a minha paz (…)”
Ato 1
- Que horas são?
- Já são sete e trinta e dois. Maldito!
- Desculpa!
- Não, não é com você…
- Ele tá atrasado?
- Como você sabe que é Ele?
- Quem mais poderia ser?
- Verdade… E está. Marcou comigo às sete em ponto. Estou aqui desde dez para as sete e nada do infeliz.
- Namorado?
- Não sei. Costumava ser, mas temos brigado e nos desencontrado tanto, que marcamos pra conversar. Hoje, trinta e dois minutos atrás. Estou criando raízes aqui e nada dele. Eu mereço. É vingança, tenho certeza… Não devia tê-lo feito me esperar tantas vezes. Aqui se faz, aqui se paga.
- É o que dizem.
- Não sei se continuo esperando ou se aceito logo que levei um bolo e vou-me embora.
- Espere um pouco mais, faça-me companhia.
- Ela está atrasada?
- Como você sabe que é Ela?
- E quem mais haveria de ser?
- É, você tem razão. Eu sou a sua versão masculina.
- Marcaram que horas?
- Sete e dez. Eu cheguei atrasado. Saí de casa às sete e dez.
- Ela é pontual?
- Costuma ser.
- Namorada?
- Não exatamente. Pelo menos não por enquanto, não com o rótulo.
- Entendo... Você sempre se atrasa?
- Normalmente. Eu sempre acho que dá tempo de chegar em qualquer lugar em dois minutos. Nunca conto o tempo que demora pra pegar o carro, estacionar, chegar ao lugar marcado… Se bem que hoje eu nem me atrasei muito. Dez minutos não é praticamente nada.
- É um tempo razoável. Ele sempre se atrasa também. Mas nunca mais de dez minutos, é a primeira vez. Só porque eu cheguei antes! Vai ver Ela previu seu atraso e resolveu se atrasar mais quinze minutos, pra fazer um charme.
- Ela não é tão esperta assim.
- Coitada da sua futura namorada. Você não é nada romântico.
- Romântico eu até sou, mas realista, acima de tudo.
- Ela deve estar com Ele.
- E Murphy. Todos juntos. Isso sim é romântico. Vocês namoram há muito tempo?
- Bastante. Seis meses, mais ou menos. E em seis meses ele nunca se atrasou mais de dez minutos. Só hoje, e só porque eu cheguei cedo. Ninguém merece.
- É pra você aprender a nunca chegar na hora, muito menos antes.
- Lição aprendida. Se bem que você chegou atrasado e não adiantou nada.
- Eu tenho que aprender a chegar na hora. Ela já deve ter vindo aqui. Não me encontrou, não quis esperar e foi-se embora.
- Será? Nada charmosa.
- Nem esperta, como eu disse.
- Sete e quarenta e três. Acho que eu já esperei demais.
- Você já tentou ligar pra Ele?
- Tentei. Fora da área de cobertura ou desligado. Como sempre. Não sei pra quê Ele tem um telefone.
- Pra dar “fora da área de cobertura ou desligado”. É um charme.
- Seu conceito de charme é meio esquisito.
- Todos os meus conceitos são meio esquisitos. Assim como eu.
- Você não me parece esquisito.
- Você é que me conhece pouco.
- Fato. Dez minutos não é tempo suficiente pra se conhecer alguém.
- Só é tempo suficiente para se atrasar.
- E pra esperar. Devia existir um estatuto do atraso e da espera. Tempo máximo pra alguém se atrasar: quinze minutos. Tempo máximo pra se esperar por alguém: vinte. O mundo seria um lugar mais tranqüilo.
- E teria menos gente na rua.
- Com certeza. Você já tentou ligar pra Ela?
- Eu nunca ligo pra Ela. Esse é o meu charme. Ela é quem me liga.
- Então Ela deve estar se vingando, fazendo você esperar tempo o suficiente pra cansar e ligar.
- Não vai funcionar. Eu não tenho o telefone dela.
- Você não tem o telefone da sua futura namorada em potencial?
- Pra quê se eu não ligo?
- Exatamente para eventualidades como essa. Se existe a possibilidade de vocês namorarem, acho que você devia pelo menos ter o número. Ainda que seja para não ligar.
- Tudo bem, você venceu. Assim que eu a encontrar, anoto o telefone.
- Muito bem. Dê mais valor a Ela. O meu namorado, por exemplo, teria maiores chances de continuar sendo meu namorado se telefonasse pra dizer que ia se atrasar.
- Você está mesmo pensando em terminar?
- Cada vez mais sério. Eu ouço mais a gravação de “fora da área de cobertura ou desligado” do que a voz dele desde que começou a faculdade. Maldita faculdade.
- Ele faz o que?
- Medicina. Quer salvar o mundo. E me deixar esperando.
- Ele deve estar treinando. Todo médico faz questão de nos deixar esperando, nunca atendem na hora marcada.
- Ótimo. Agora virei paciente estagiária do meu futuro ex-namorado. E a sua futura namorada está aprendendo com Ele.
- Ela não é tão esperta pra fazer medicina. Nem faculdade faz.
- Você fala dela como se ela fosse uma besta quadrada.
- Não é quadrada. Pelo menos por enquanto. Mas há uma grande chance de se tornar redonda daqui a uns vinte anos.
- Nossa, que amor!
- Pra você ver, Ela é pouco brilhante, mas mesmo assim eu gosto.
- Enfim romântico.
- Viu?! Estou aprendendo. Vou até anotar o telefone dela!
- Parabéns! Quem sabe um dia você liga, né?
- É, quem sabe!
- Sete e cinqüenta e três. Ainda bem que encontrei você. O tempo está passando mais rápido.
- O tempo é uma criatura interessante. Um minuto sempre tem mais de sessenta segundos quando você não está fazendo nada.
- E menos quando você está.
- De qualquer forma, quase quarenta minutos é demais para um atraso, né? Mesmo que eu só esteja aqui há vinte e cinco, e que os últimos vinte e poucos tenham voado.
- Verdade. Acho que já podemos ir embora sem sentir culpa por não termos esperado.
- Seria um desperdício.
- Ir embora?
- Esperar tanto tempo para nada.
- Quer tomar um café então?
- Falou a palavra mágica!
- Ótimo, estou morrendo por um café.
- Alex, muito prazer.
- Marcela.
Os dois vão tomar um café. Ela liga para o Alex e conta que a mãe começou a passar mal e por isso não pôde ir. Pede que ele vá até sua casa para se verem. Marcela liga de novo para Ele e consegue completar a ligação. Ele diz que está esperando há dez minutos e ela não aparece. Marcela descobre que tinham marcado às oito, não às sete. Marcela e Alex se despedem. Marcela vai ao encontro dele e Alex para a casa dela.
- Foi muito bom esperar e tomar um café com você.
- Igualmente. Quando decidir confundir o horário e ficar uma hora esperando à toa, pode me chamar.
- Eu já tenho uma qualidade para ser sua futura namorada em potencial, tá vendo?! Também não sou muito brilhante…
- Você tem outras qualidades para ser minha futura namorada em potencial. Falta de brilhantismo não é uma delas.
- Bom saber. Ainda tenho potencial.
- Quando lhe vejo de novo?
- Que tal daqui a um mês, no mesmo lugar em que nos conhecemos. Às sete e meia?
- Sem atrasos?
- Com quinze minutos de tolerância, nem mais nem menos.
- Você vai me dar seu telefone pro caso de eu me atrasar mais?
- Pra quê, você não vai ligar. É seu charme.
- Verdade. Então nos vemos mês que vem.
- Até lá. Bom começo de namoro pra você.
- E bom término pra você.
Um comentário:
além de tudo,prefiro destacar:
ótimo fechamento.
Nada mais de traumas com finais.
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