sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Insônia

Já passa das três da madrugada, o relógio digital na mesinha cabeceira não deixa que ela se engane. Mas o tempo se confunde, naquele estado quase hipnótico em que horas se passam num piscar de olhos e minutos duram semanas sob um olhar mais atento. Os pensamentos se sobrepõem como roupas empilhadas no armário. Pensa num lugar pra onde deseja viajar e, de repente, lá está. Um centro urbano, cheio de desconhecidos, cada um cuidando de sua vida, assim como ela. Vestida com uma blusa linda que viu há poucos dias em uma vitrine, sua calça jeans favorita e aquelas botas maravilhosas que viu num comercial e decidiu comprar assim que encontrasse. Mas que bolsa é essa? Não se lembra de tê-la visto, certamente não a possui. Mas parece fácil de fazer. Boa idéia, decide comprar tecido e costurar uma bolsa exatamente igual àquela, assim que se levantar. Mas o que está fazendo ali mesmo? Ah, sim, foi encontrar-se com alguém. Onde ele está? Passa os olhos pela multidão, não reconhece ninguém. Espera! Lá no fim, onde a visão mal alcança… quase reconhece, mas ele se move rápido. Ela se vira para acompanhar e tudo fica escuro. Abre os olhos, os números vermelhos do relógio denunciam que se passaram vinte minutos. Mas para onde foram? Não estava dormindo nem nada, apenas pensando. Aquela bolsa, como era mesmo? Ah, nunca vai encontrar um tecido com aquela estampa. Mais uma idéia brilhante que não resiste à luz da realidade, como a maioria delas, aliás. Fixa o olhar no relógio, que parece se envergonhar. Os números só mudam quando ela não está olhando, já ouviu falar nesse tipo de coisa. É uma teoria de que cada coisa existe em seus inúmeros estados possíveis, ao mesmo tempo, quando ninguém está olhando. Mas quando olham, a coisa tem que escolher um estado qualquer pra se apresentar. Acreditava nisso quando era criança, muito antes de ouvir falar nessa teoria, coisa de física quântica. Quando jogava dados, por exemplo, cobria-os antes que alguém pudesse ver, inclusive ela mesma. Tinha certeza de que, se ela pensasse bem forte enquanto ninguém sabia o resultado, os números mudariam para aqueles que ela queria. Mas logo que pensava nisso, sentia-se culpada: os deuses mudariam os números só porque ela tinha descoberto como aquilo funcionava. E quando demonstrava a consciência de que os deuses mudariam tudo, também sabia que eles mudariam tudo de novo só pra confundi-la, pra que ela não soubesse que eles sabiam que ela sabiam. E quando ela chegava a essa conclusão, mudava tudo de novo, sempre neste círculo vicioso cuja única chance de quebra era parar de pensar nisso. Mas o pensamento tem vida própria, continua baixinho, incansável, mesmo que a gente canse dele. Pra evitar tanto trabalho, parou de cobrir os dados - Medida que não foi tão eficaz quanto supunha: se os números não correspondessem à sua vontade, imaginava como teria sido se os tivesse encobertado e caía no mesmo dilema. Até que parou de jogar dados. Era mais saudável, mentalmente falando. Mas até conseguir se livrar desses pensamentos, a lógica foi aplicada em muitas coisas. Na escola, antes de olhar a nota de uma prova, por exemplo, ficava segurando-a, calada, concentrada, desejando que a nota tivesse sido boa. Adiava a vista ao resultado até o último momento, como se alguma coisa pudesse mudar. Continuou com isso até que contou sua lógica para o irmão mais velho, que facilmente a refutou: de nada adiantava que ela adiasse e “pensasse bem forte” se a professora que tinha corrigido a prova já sabia da nota. Era lógico, mas a menina que ainda acreditava em mágica demorou um pouco pra se convencer totalmente. Voltou a olhar para o relógio, dois minutos se passaram. Não é possível! Todo esse resgate de memória, todo esse pensamento lógico, só valeu dois minutos? O tempo não é justo. Mas, pensando bem, o pensamento não foi tão lógico assim, afinal, o relógio deveria se comportar normalmente enquanto ela o observa, não é? Cada minuto deveria durar exatos sessenta segundos. E será que duravam? Será que o problema não estava no relógio, mas na sua própria percepção? Resolveu contar os segundos. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, dez, vinte, cento e oitenta e quatro, os dados, a bolsa… hã? Quando deu por si, já eram quase cinco horas. Os primeiros raios de luz apareciam lá fora, ela decidiu parar de se torturar. Não conseguia dormir, não fazia mal, não ia trabalhar, não tinha nada marcado, poderia perfeitamente dormir à tarde se batesse o sono. Era melhor se levantar logo e deixar a cama livre para a madrugada se deitar. E levantou. Caminhou até a sala e sentou-se no sofá, decidindo o que faria a seguir. Fechou os olhos um instantinho, só para visualizar melhor as possibilidades. Podia comer alguma coisa, tomar um banho, ler um livro, ver um filme, comer, banho… e adormeceu sentada no sofá.


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é só um trecho. Deve fazer parte de um texto muuuuito maior, se um dia eu conseguir terminá-lo...